Quando eu era mais jovem, pensava que sabia tudo, e o mundo não
passava do meu quintal, com sua alta goiabeira, pé de pimenta, pinha e algumas
hortaliças cultivadas pelo meu avô. Achava que falar diante do espelho comigo
mesma era natural e só me dava conta que não podia ser, quando meu tio me
surpreendia e zoava comigo, então me sentia boba, e pulava da penteadeira de
madeira escura com pedras de mármores e grande espelho central, talhada com
desenhos antigos e que era o xodó da mina avó.
Eu era tão criativa, achava que um cabo de vassoura velha podia virar
um microfone e eu podia cantar a minha canção ao pé da linda e majestosa
goiabeira, mas sempre meu tio aparecia e sonho era desfeito, ela ria de mim,
fazia até um gesto com o dedo indicador girando junto a sua cabeça. Achava ele
que eu era maluca? Ou eu passei a acreditar que era e deixei de interpretar pra
mim mesma?Não se deve fazer isso com o sonho de uma criança, quem sabe hoje eu
não seria uma estrela? Não sinto raiva do meu tio, por não ter deixado aflorar
em mim possibilidades. Hoje relembrando acho graça. Recordo com saudade a sua
figura sorrindo para mim... Ele sim era um artista, tocava muito bem piano,
violão, cavaquinho e nunca estudou em escola especializada para isso, aprendeu
porque tinha o dom, era autodidata. Bem, como não podia interpretar
diante do espelho, nem cantar com meu cabo de vassoura, a saída foi optar por
escrever. Tinha um velho caderno que eu colocava as minhas impressões de tudo
que acontecia comigo e aquilo me fazia um bem enorme, mas escondia dentro do
meu armário, por baixo de roupas nem sempre dobradinhas como deveriam ser, mas
uma garota de 11 anos não se preocupava com isso, a não ser quando alguém abria
o armário e dizia que aquilo não era descente e eu precisava organizar, afinal
era uma mocinha... Mas eu era uma mocinha tão travessa, mimada e birrenta, não
tinha limites, aprendi com a vida a me dar freios e regras. Era tanta gente pra
mandar e dizer o que eu deveria fazer, e sem parâmetros eu acabava não
obedecendo a ninguém. Indomada, aprendi por tentativas e erros, não
diferentemente dos ratinhos de laboratório, mas com inteligência, discernimento
e opção. Aprendi que a juventude nos dá asas e a maturidade nos dá raízes e
fixação, sem, portanto nos privar de ver ao alto as nuvens passarem e os
pássaros com suas asas rasgar o céu. Aprendi que estar jovem é saber que a
idade mudou, o espírito pode permanecer o mesmo, e a limitação do corpo e de
certas atitudes não poderá nos privar de sonhar e continuarmos sendo leves,
livres e manter o bom humor (que é a chave do negócio). Da minha infância trago
cheiros e impressões singulares, descobertas e cores que me encantou e encantam
até os dias de hoje. Também aprendi a ver no obvio o espetacular, sem crivos,
rótulos e julgamentos. A sensibilidade que me norteou. Perceber nas coisas simples
grande valor, num sorriso fraterno, num cuidado dispensado... Coisas que não se
vende em lojas de departamento, nem de grife. Nos seres aprendizes devemos
buscar enxergar com o olhar caleidoscópico, superando o que
não é positivo e se dando o prazer de ver e sentir outros lados, novas facetas,
em nós e em outros que nos cercam. Fazer tudo algo novo. Tudo o que sou e o que
tenho a doar remetem a minha infância, aos meus sonhos lá de trás, as pessoas
que me acolheram e me mostraram o caminho, as tristezas por que passei e as
alegrias que graças a Deus, hoje sei, foram maiores. Porque trago essas
impressões, hoje tão distantes? Talvez para dizer a mim mesma que deram certo,
quando em muitos momentos eu mesma cheguei a pensar que seria inútil tentar ir
mais alem. Talvez eu mesma fosse algo perdido no tempo e o sucesso em ser e me tornar
uma pessoa melhor dependeria somente dos outros. Quando na verdade por instinto
eu já sabia que tudo, de mal ou de bom dependeria sempre de mim. Então eu
escrevia o que acontecia no meu intimo tão desconhecido, cheios de muitos
porquês, interrogações e até ressentimentos,
que desde cedo tive que aprender a ter ao meu lado empenho e vontade
para fazer acontecer coisas positivas, mesmo tendo pessoas muito queridas
torcendo por mim. Hoje sei, tive bastante sorte, sei, minha família foi
providência de Deus, talvez não tivesse desenvolvido o caráter que tenho hoje
se não tivesse passado por experiências tão peculiares nos arranjos familiares
que vivenciei. Cresci, e como as coisas no mundo adulto se processam de
maneiras distintas do mundo infantil, passei muito tempo sem escrever, hoje
sinto que poderia escrever divinamente se não tivesse parado de exercitar
palavras em tinta, se não tivesse deixado de jorrar em folhas brancas,
sentimentos. O tempo passou, é fato, mas isso não é dramático ao ponto de deixar
frustrada, porque não sou o que poderia ter sido, estou feliz porque me tornei infinitamente
camaleoa, mudo o tom, a cor e despisto emoções que possam obstruir minha
coragem de me reinventar. Então de vez enquanto eu me atrevo a escrever coisas
que me ajudem a entender a mim e ao mundo ao meu redor, recomeçando sempre tudo
em minha vida, mas nunca se esquecendo do que me formo e dispo.
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